Gajas

Canções Sublimes e Esquecidas do Século XXI


Em The History of English Literature de Peter Keenlyside pela Naxos Audiobooks, o autor descreve a contemporaneidade literária, que classifica de pós-modernista, do seguinte modo: "A literatura pode por vezes parecer, neste novo século, parte de um circo mediático frenético e consciencioso, com a proliferação de prémios, promoções e eventos televisivos (…)". Basta ligar a televisão e ver os Ídolos ou a MTV, ou excursionar casualmente por uma discoteca ou night club para se fazer a mesma transposição - palavra por palavra - para a música. Acresce a isto o fenómeno da fragmentação - essa multitude de vozes profetizada por T.S. Elliot em The Waste Land - tanto estilística - a discriminação de estilos diversos tem vindo a tornar-se crescentemente mesclada à medida que o século progride - como tecnológica - o acesso à música é hoje omnipresente e ilimitado, marcando indelevelmente o nosso tempo, para melhor ou para pior, com o ferrete da subjetividade absoluta: a casa, o carro ou o computador de cada um é o seu castelo musical, pessoal e intransmissível. Navegando, como Ulisses entre as Sereias, por esta galáxia de Möglichkeiten (alemão para "possibilidades" - é uma palavra fetiche) está o Dreizehn - amarrado ao navio do conhecimento pela tripulação dos clássicos. Com uma diferença crucial: ao contrário do astuto grego, sabiamente resguardado do feitiço musical feminino pelas amarras do seu destino, decidir emprestar um ouvido à modernidade, resguardando o outro, firme, para a tradição. Esta lista é o resultado dessa minha aventura: como o título indica, aqui apresento treze obras-primas musicais do nosso tempo indiscutivelmente sublimes, porém estruturalmente esquecidas. E digo estruturalmente por inferência lógica - ainda que uma ou outra canção, um ou outro álbum ou um ou outro grupo consigam por vezes emergir das correntes subterrâneas dos oceanos de ruidoso som e fúria criativa que definem a modernidade, ainda assim, qualquer produto artístico superior está condenado a ser, necessariamente ou na esmagadora maioria dos casos, por esse mesmo facto, uma realização esquecida. O tempora, o mores! - acusação imortal de Cícero contra a corrupção da decadente República Romana do seu tempo, a cuja ruína, memoravelmente, já não testemunhou. O tempora, o musica! - exclama-se aqui, com incaracterística positividade, perante os tesouros resgatados das profundezas das águas do esquecimento. Assim os ofereço para adoração do mundo e júbilo do leitor.


13. The Golden Throne, Temples (Sun Structures, 2014) 

Há algo de anacronicamente bizarro nos Temples. Quando, meio por acaso - como tantas vezes acontece - comprei o seu primeiro disco, Sun Structures, em 2014, embarquei numa viagem no tempo, de volta aos anos 60 onde nunca estive, musical ou espiritualmente. E no entanto, apesar da nostalgia, há aqui também modernidade. Os efeitos de produção, a batida contemporânea, as justaposições harmónicas e efeitos orquestrais ligeiramente exagerados, teatrais e quase irónicos - tudo isto, que é esteticamente ambíguo, causa um certo desconforto e uma sensação vagamente claustrofóbica (algo como experimentar o mundo através de um saco de plástico transparente). The Golden Throne é, porventura, o joker do lote, reunindo todos os atributos peculiares à excentricidade dos Temples que tornam o disco, apesar do que fica escrito, digno de audição: a facilidade melódica, os refrões memoráveis, a ambiência energética, o ritmo forte, a instumentação opulenta, os efeitos garridos e a deriva psicadélica - são estas as marcas do seu estilo. Uma revelação para melómanos diligentes.


12. Present Tense, Radiohead (A Moon Shaped Pool, 2016)

Após a hecatombe do The King of Limbs - humildemente, o pior álbum de todos os tempos - o ceticismo relativamente aos Radiohead é não apenas inteiramente justificado, mas constitui até um atestado de sanidade mental. Propriamente falando, a queda é anterior, mas sejamos justos: OK Computer - inversamente, provavelmente o melhor disco da história - é um marco imbatível, quase impossível de superar. É que apesar da benevolência dos olhares retrospetivos, o veredito da memória é eterno: Kid A foi uma tremenda desilusão, da qual muitos fãs nunca recuperaram. E também assim Amnesiac - do qual até gostei, ou quis gostar mais. Mas Radiohead é sinónimo de génio, e o génio surpreende sempre. A teimosia ou o tempo revelaram em Kid A uma obra profética e permanente (mas não tanto quanto a revisão crítica reclama); Amnesiac continua a ter os seus momentos e Hail to the Thief, In Rainbows e A Moon Shaped Pool são discos a reter em qualquer coleção (ou a ouvir no spotify). Everything in Its Right Place é translucidamente a obra-prima musical do grupo neste século, mas esse reconhecimento universal desqualifica a canção da presente lista. Em seu lugar, Present Tense - assombração melódica de candura desarmante e confissão desbragada daquela dor e inadequação tão características de Thom Yorke. Um Creep mellow para melancólicos trintões.


11. Menino Bruno, Tássia Holsbach

Quem é Tássia Holsbach? Não sei dizer. Cantora brasileira com créditos no youtube, algumas gravações em estúdio e sem produção discográfico - por enquanto - a seu nome, foi descrita como uma "artista nova", influenciada pela música negra - folk, blues, hip-hop, há de tudo... - em site pouco informativo e menos ainda recomendável. Reformulando: quem é Tássia Holsbach? É a autora de Menino Bruno - a música do genérico dos episódios de Bruno Aleixo no psiquiatra. Balada viciante de rock moderno e toada forte de melodia fácil  e refrão memorável (musicalmente, porque a letra é incompreensível). Tudo isto embrulhado numa ambiência de nostalgia, misteriosa e impressiva - os paradoxos, em suma, de uma obra-prima em miniatura. Aviso: não é para mocinhos. 



10. Edward Sharpe and the Magnetic Zeros (Here, 2012)


Edward Sharpe foi enviado à terra para salvar a humanidade, mas desviou-se do reto caminho pelo seu amor pelas mulheres e apego ao romance. Palavra de Alex Erbert, criador do alter ego messiânico que dá nome a este conjunto de onze instrumentistas. De punkeiro iconoclasta e zombeteiro a líder de culto barbudo e espiritual, na sequência de uma epifania após temporada de isolamento para recuperação do consumo de drogas, a segunda encarnação de Erbert como Jesus Cristo da música ou Jim Morrison de postal, à qual acresce a deriva comunitária hippie de amor livre e comunhão com a natureza, pode muito bem transbordar a escala do ridículo do leitor mais avesso aos clichés - mas ridícula é coisa que a sua música não é. Caso em consideração: Mayla, do segundo álbum de estúdio da banda, Here. As harmonias folk e o ethos espiritual, onírico e apaziguador, convincentemente arquitetadas pelo jogo entre as vozes, os coros e a instrumentação sóbria, ecoando distante como uma visão, conferem credibilidade e satisfação a um projeto à partida demasiado absurdo para resultar. Mas resultou -  e a sensação é a de um raio de luz ao sol poente, uma ilha de tranquilidade entre o frenesim de todos os dias, um espaço de repouso cósmico e contemplação para regozijo dos sentidos.


9. I Want the World to Stop, Belle and Sebastian (Belle and Sebastian Write About Love, 2010)

Não sou um particular aficionado desta banda glam-indie escocesa que, à semelhança da esmagadora maioria dos "músicos independentes", cultivam esse estilo aguado, sonolento, levezinho e preguiçoso que instintivamente repugno. Mas o seu sétimo álbum de estúdio, Write About Love - em versão abreviada - é um caso aparte. Milagre em onze camadas, todas elas perfeitas, Write About Love é uma alegria ininterrupta, uma coleção de baladas e canções de uma clareza, brilhantismo, orquestração, beleza e produção imaculadas. Tudo aqui é harmonioso, bem construído, temperado, suave e jovial - uma versão do mundo a cor-de-rosa. Ouço este disco e fico bem disposto - é assim tão simples. E confesso até uma cerca dificuldade em convocar, assim num rompante, um outro álbum do qual pudesse escolher qualquer tema para ilustrar todo o seu espírito. I Didn't See It Coming; Come On Sister; Little Lou, Ugly Jack, Prophet John ou Write About Love talvez se destaquem, mas foi sobre I Want the World to Stop que a minha escolha recaiu. Não esperem - desta canção ou de qualquer outra - abismos de grandeza ou ecos de transcendência. Toda a inspiração, charme e encanto destas melodias brotam precisamente da graça assumidamente despretensiosa e  descomplicada do seu estilo. Três quartos de hora de ilusória felicidade condensados em quatro sublimes minutos.


8. And No More Shall We Part, Nick Cave and the Bad Seeds (No More Shall We Part, 2001)

Do júbilo à angústia, sombria e cinemática de And No More Shall We Part. O álbum - também ele sem fraquezas -, tendo sido já descrito como uma coleção de "novelas musicais", é em si uma obra-prima - do cinema, da música e da literatura. Há um estranha desconexão, nesta alucinação sinestética, entre a soturnidade das linhas melódicas, de orquestração fúnebre e carregada; e as letras das canções, quase todas elas baladas de um amor triunfante e esperançoso. Talvez nesse contraste, mais do que em qualquer outra coisa, se revelem os tormentos pessoais de Nick Cave, após um silêncio de quatro anos em luta contra os abismos do vício e as agonias da depressão. Todo o álbum é uma confissão: de fé, nas capacidades de rejuvenescimento do espírito, e de superação e transcendência individuais em oposição, nas palavras de Hamlet, aos "Oceanos de problemas" do mundo. A sensação que fica é mesmo essa - alguém saído de uma longa hibernação, os sentidos renascidos para a beleza e possibilidades da vida. A solenidade dessa visão, essa contradição aparente entre o estado de espírito do sujeito e realidade que descreve, conferem a esta obra o peso da sinceridade subjetiva do renascimento íntimo - esse lugar de onde brota toda esta hipnótica e melancólica beleza.


7. Young and Beautiful, Lana Del Rey (The Great Gatsby: Music  Baz Luhrmann's Film, 2013)

Entre os vícios mais potentes conhecidos pelo homem - as drogas, o álcool, o jogo, o cinema ou as mulheres - poucas ou nenhumas vezes se imputam os predicados da música, essa intoxicação do espírito e arrebatamento do intelecto, capaz de conjurar as paixões mais violentas e transformar pessoas sãs em demónios hedonistas em espasmos de apoteoses sensitivas. Dos modernos bruxos da ciência dos sons, demónios cultores e mestres da sua alquimia, ninguém se eleva, em inspiração e loucura, acima dos Doors e Lana Del Rey - são eles as figuras supremas da extravagância musical dos últimos setenta anos. Ainda que poucos a considerem nestes termos, essa musa sensualíssima de desejos traficados em êxtases góticos e decadentes, Lana Del Rey representa, na sua obra e persona, a genuína assombração e milagre da arte mais refinada e sugestiva. Ao contrário do que a crítica consensuou, é nos seus dois primeiros álbuns que por enquanto legou ao mundo a sua marca perene e garantia de imortalidade. Neles, e em Young and Beautiful - esse cântico de luxúria opulenta, voluptuosa e afrodisíaca, destilada no mesmo alambique narcisista do qual se elevam os eflúvios de toda a criação superior e a baixeza do coração das mulheres.


6. Fantasy Islands, The Shins (Heartworms, 2017)

Quando, em 2017, os Shins lançaram Heartworms, o seu quinto álbum, eram já então reconhecidos como provavelmente a banda independente de maior sucesso comercial e crítico do século XXI. Mas o que avulta do seu estilo - explorado neste álbum como em nenhum outro - é o ecletismo pop de que dão provas, essa prodigiosa faculdade de se servirem dos mais diversos recursos musicais, alterando géneros num contínuo sonoro harmoniosamente fluido e coerente, sempre impecavelmente  trabalhado. Aqui se misturam laivos new wave com traços de psicadelismo, arranjos eletropop com uma veia melódica declaradamente pop, num testemunho de versatilidade que desafia etiquetas. Posto de modo simples, os Shins sabem escrever boas letras e tocar boas canções. São, no nosso tempo, a aproximação mais plausível de como soariam os Beach Boys se tivessem nascido com uma geração de intervalo - a mesma energia criativa sempre pronta a rebentar, a mesma abundância de ideias quase em perigo de submersão -, enriquecidos e dispersos pelo labirinto de discursos que libertam e confundem a modernidade. E, no entanto, em Fantasy Island nada disso está presente. Canção de insuperável beleza, simplicidade e nostalgia, épica em ressonância mas intimista no sentimento, a palavra nobreza impõe-se à mente como descrição adequada: nobreza de espírito e de ideias, de conceção e melodia, no acompanhamento e nas palavras; os meios e os fins perfeitamente balanceados para articular musicalmente o alcance superior de toda a inteligência - a perfeição formal, sublime e emocionate, num apelo estético impossível de ignorar.


5. You Know I'm No Good, Amy Winehouse (Back to Black, 2006)

Dizer que Amy Winehouse é uma ilustre desconhecida ou que Back to Black é um álbum esquecido está longe de constituir uma proposição mentalmente esclarecida. E, no entanto, aqui estamos - particularmente eu, a afirmar isso precisamente. Esclarecendo: não é que Back to Black não seja universalmente reconhecido como um grande disco, firmemente incensado nos louvores  do público e da crítica. Mas nessa liga jogam também, à volta do mesmo período, Is This It, dos Strokes (2001); Elephant, dos White Stripes (2003); ou Franz Ferdinand, saído no mesmo ano, pela banda homónima ao álbum. Mas Back to Black é tão incomparavelmente mais do que tudo isso, tão inexprimivelmente acima do alcance de tais comparações, que a diferenciação se impõe. Milagre musical e delícia permanente, Back to Black é decididamente um dos melhores álbuns do presente século e um dos marcos musicais mais pungentes de todos os tempos. Oscar Wilde pode muito bem ter afirmado que toda a arte medíocre é sincera, mas tal não significa que o inverso seja verdadeiro (como aliás o próprio definitivamente provou em De Profundis, essa revelação atormentada e lancinante que perpassou e continuará a perpassar incontáveis gerações). O que Amy Winhehouse legou ao mundo foi precisamente o exemplo mais brilhante, arrebatador e trágico de confissão musical que conheço, numa expressão de angústia tão desabrida e corajosa quanto irónica na conceção (a instrumentação alegre sob o apelo desesperado - grito impotente de socorro contra a morte em marcha - das palvavras). A minha reação pessoal a esta música de auto-depreciação, desprezo íntimo e angustiante honestidade é invariavelmente um cocktail de emoções contraditórias: pasmo estético pela grandeza, admiração consternada pela ousadia e piedade existencial pelo destino - uma hiper-catarse por alteridade. You Know I'm No Good - o título diz tudo acerca da intrepidez desassombrada, da valentia e desaforo do desafio declarado contra si própria, o mundo inteiro como testemunha. Mas a música, nesse sarcasmo deprimente e espantoso do jogo com as palavras, diz ainda mais - diz-nos, perpetuamente, que o corpo perece, mas a arte é imortal.


4. Elea, Worakls

Worakls é o nom de plume de Kevin Rodrigues, DJ francês de trinta e um anos que em março deste lançou Orchestra, o seu primeiro álbum (ainda não escutei). Antes disso, uma série de EP's cujas faixas se podem ouvir no youtube, onde descobri, fascinado, a sua música. Descrito como um criador de techno sério com um toque ligeiro, ou ainda de techno melódico carregado de energia nervosa e condensada, as suas faixas são obras de densidade sinfónica, com estrutura e orquestração claras, geralmente variações em ostinato e em crescendo (imaginem um compositor de Boleros eletrónicos). Esta terminologia não deveria surpreender: Worakls foi educado na tradição musical clássica, tendo estudado piano desde os três anos, e experimentando mais tarde, enquanto adolescente, estilos diversos em bandas de jazz, rock e bossa nova. É evidente, mesmo numa primeira audição, estarmos perante um mestre da forma, dotado das mais extraordinárias faculdades melódicas, complementadas com uma magistral intuição instrumental. Elea é a sua obra-prima mais sombria e evocativa -  e a minha composição de eleição do autor, a par do remix de Trauma de N'to, obra de ambiência e características muito semelhantes, mas possivelmente sem o mesmo refinamento estético -, combinando na perfeição essa energia impaciente nas cordas com o abatimento sem esperança - uma espécie de arrependimento negro - nas teclas, pulsando tudo isto pelo compasso firme, fantasmagórico e sedutor de ritmo tecnho em fundo. Com a apoteose final a reforçar ainda mais o carácter inevitavelmente obsessivo subjacente à estrutura em ostinato (em italiano, obstinado, o que explica a ininterrupta repetição do material temático, em variações progressivamente mais intensas e espetaculares), esta composição de primeiríssimo nível - a melhor criação puramente instumental do nosso século - apresenta-se como a banda-sonora ideal para ruminar remorsos, revisitar possibilidades quebradas e mergulhar a alma pelos desconsolos sentimentais que a atormentem ainda e inflamem com fúria fria o peito.


3. Jenny Wren, Paul MacCartney (Chaos and Creation in the Backyard, 2005)

Já foi dito que a dupla Lennon-MacCartney é a força musical mais importante que o mundo conheceu depois de Beethoven. Pelo meio haveria Chopin, Tchaikovsky, Wagner, Brahms, Stravinsky e os Doors a considerar, mas inclino-me a pensar que ainda que a afirmação não seja verdadeira, é pelo menos altamente plausível. Acontece que Paul MacCartney não morreu e continua a criar - e bem. Chaos and Creation in the Backyard é um disco que pelo menos merecia outra atenção, quanto mais não seja por Jenny Wren, essa joia destacada numa coroa onde reluzem Yesterday, Eleanor Rigby, Hey Jude, a parte nobre do medley de Abbey Road - talvez o momento cimeiro de toda a música no século XX - ou Let It Be. Parente bastardo de Blackbird, por sua vez uma regressão espúria de Bach, esta canção de uma conceção singela, pureza pastoral e amena tristeza aguça-se no espírito como uma elegia à própria vida - e não exagero ao afirmar que vale a pena viver para se escutar um poema musical de tão transcendente e tocante beleza. Bach, Mozart, Beethoven ou qualquer outro músico, de qualquer parte do mundo e de qualquer tempo - nenhum deles desmereceria uma obra deste calibre no seu currículo.




2. Circling, Chris Cornell (Higher Truth, 2015)

Se há figura capaz de ombrear com Jim Morrison em expressividade interpretativa e aura enquanto cantor, essa figura é Chris Cornell. A sua voz rouca, arranhada, experimentada, grave e poderosa (e por vezes até cansada - desse cansaço existencial de cowboy das pradarias que sobreviveu ao seu tempo) transmite-nos tudo aquilo que, em retrospetiva, precisamos saber. Após o relativo fiasco de Scream, lançado seis anos antes, Cornell tomou o seu tempo, e regressou às raízes grunge em companhia dos Soundgarden para este seu álbum de despedida. Mas a rebeldia de outrora é aqui uma lamento cansado e outonal, a confiança de uma alma velha que observa já a vida à distância, e na segurança dessa distância revisita o seu passado. "A poesia é o transbordar de sentimentos poderosos: a sua origem está na emoção recordada em tranquilidade", assim descreveu William Wordsworth, fundador do movimento romântico inglês, a sua visão poética. Apoiado tanto em sonoridades de guitarra mais rasgada quanto em baladas de feel acústico, reflexivo e confortante, Higher Truth é o testemunho final de uma vida examinada e bem vivida. Circling é esse último adeus, fúnebre e romântico, que não esconde as desilusões e errâncias de um coração inquieto, que apenas na morte encontrou a paz. Assim saibamos todos sair de cena com a mesma grandeza, graça e sabedoria.


1. John Wayne, Cigarettes After Sex (Cigarettes After Sex, 2017)

Ele deve ser louco / a viver como se fosse o John Wayne / sempre a enfrentar o mundo e a perseguir a rapariga / baby, ele deve ser louco. Assim reza a letra do refrão de John Wayne - a canção sublime e esquecida mais eminente do século XXI. Título destacado - por mim - do primeiro álbum de Cigarettes After Sex (magnífico), esta elegia em memória de um tempo relativamente pacífico e funcional quanto às possibilidades de romance entre homens e mulheres, é também, por contraste, um libelo acusatório, tanto mais devastador quanto cândido e desapaixonado, contra a distopia sexual contemporânea, na qual o interesse natural pelo sexo oposto tem vindo a ser progressivamente encarado pela cultura como uma perversão a corrigir. Nos cambiantes desse lirismo ameno, tão característico desta nossa época pós-rock, em envolvência abertamente erótica, suave e cativante, aqui se canta todo o desencanto de uma geração ainda amarrada às ilusões de intimidade partilhada que - hoje o sabemos - nunca de facto existiram. Mas é precisamente na sombra dessa projeção que se desenha, tormentosamente, a frescura dessa liberdade que a verdade sempre carrega. E a verdade é que nunca a mágoa soou tão bem.





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