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Canções dos Doors



The Doors - poesia, êxtase, rock, blues, drogas, sedução e loucura. Formados em 1965, por dois estudantes de cinema, Jim Morrison e Ray Manzarek (o indispensável teclista), aos quais se juntariam Robby Krieger (guitarra) e John Densmore (bateria) - os nomes estão pela ordem da fotografia -, os Doors representam para mim, acima de qualquer outro símbolo desse fenómeno, a vertigem da eterna juventude - esse sonho impossível e sombrio que para sempre encarnarão com a sua arte inimitável. Musicalmente, os Doors são incatalogáveis - a força da sua inspiração está no ecletismo de estilos, na embriaguez da poesia, no sinistro do vício, na pulsão da sexualidade, no desbragamento dos sentidos, no inefável da espiritualidade. A beleza e o mistério da sua estética característica não apresenta, como acontece com os Beatles, um apelo universal - os Doors não são para toda a gente. O distinto dinamismo criador tétrico e tortuoso que é seu apanágio ilustra bem a conceção de Eugénio D'Ors - crítico literário espanhol da primeira metade do século XX - do "barroco universal": esse devir supra-histórico, fragmentado e dionisíaco que irmana Nitzsche e Beethoven, Mefistófoles e Jim Morrison. Como geralmente acontece com os agentes possuídos pela chama da criação destrutiva, os Doors brilharam intensamente e muito alto, mas extinguiram-se rapidamente. Com a reedição deste post, do qual nada alterei exceto o título - de "músicas" para "canções" - limito-me a acrescentar algumas inevitáveis palavras, quase uma década passada - o dobro do tempo em que os Doors permaneceram ativos - da elaboração da lista. Uma nota final acerca da mesma: que ninguém se melindre com a ausência de clássicos como Alabama Song (Whisky Bar), Light my Fire, The End, Roadhouse Blues ou LA Woman - todo o ser consciente deve buscar sempre o alargamento da portas da perceção, rumo ao conhecimento mais subtil e rarefeito, numa sempiterna batalha contra o óbvio; menos desculpável é a ausência de títulos como Soul Kitchen, Love Me Two Times, Peace Frog, Blue Sunday, The Spy, Maggie M'Gill ou Hyacinth House, cuja não seleção me parece hoje inexplicável - mas, como eu vejo a questão, a palavra já não é minha - agora pertence às eras).


13. Love Street

Sedutora melodia, incluída no terceiro álbum da banda, Wainting for the Sun (1968), Love Street, até pode ter sido uma serenata de Jim Morrison à sua namoradinha de então, mas, na minha versão, esta balada alegre - com o seu quê de melancólico - será sempre a celebração lírica de um bordel. Mais do que um bordel, um bairro de prostitutas inteiro - o Red Light Disctrict da imaginação, iluminado pelas primeiros lampejos da luz elétrica ao sol poente, crepitando de languidez e luxúria, carregado com essa energia embriagada e púrpura da cidade ao encher-se de vida.



12. Moonlight Drive

O título diz tudo - Moonlight Drive é uma aventura, uma fantasia erótica, uma sedução. Quem nunca conduziu pela Baía do Estoril, nas noites quentes de estio - o mar pela direita e a lua à sua frente - com uma mulher bonita sentada ao lado, não perceberá esta canção. Do álbum Strange Days (1967), o segundo de estúdio.


11. Yes, the River Knows

É geralmente reconhecido que Waiting for the Sun se encontra uns furos abaixo dos seus dois antecessores. Embora concorde com essa avaliação, Yes, the River Knows é já o seu segundo - embora último - representante nesta lista. Tributo à majestade e ao mistério da natureza através do qual os Doors navegaram por intuições de imortalidade, representa esta canção uma das suas árias mais serenas e espirituais. Uma interrogação angustiosa e, no entanto, estranhamente apaziguadora pelas insondáveis águas do passar do tempo e dos trabalhos da humanidade, esta meditação poética transporta o ouvinte para estádios sensoriais muito difícéis de descrever - uma aurora existencial através de epifania musical.


10. Queen of the Higway

Americanada das estradas a perder de vista, desertos escaldantes ao crepúsculo e uma mulher muy caliente e vagamente exótica - será índia ou mexicana? - com o dedo esticado à boleia, calções de ganga justinhos e pernas bem à mostra. Eis o filme de Queen of the Higway - o meu filme pelo menos -, essa rapsódia rock pictórica e sugestiva, seca de batida como a poeira das pradarias e inquieta de melodia como o desejo em contenção antes do disparo. Do penúltimo álbum de estúdio da era Jim Morrison, Morrison Hotel (1971).


9. I Can't See Your Face In My Mind

Trip extravagante e oriental, I Can't See Your Face in My Mind pode, numa primeira audição, alienar alguns ouvintes pelo seu burlesco e comicidade involuntária. Mas, tal como acontece com a generalidade dos temas do segundo álbum, Strange Days, a estranheza de uma apatia profunda e a dor de uma estupidificante solidão ocultam-se sob o véu de ironia galante dos refinados desenhos musicais. Uma vez atravessado esse fumo, o efeito é viciante e devastador.


8. Wild Child

A crítica é unânime: The Soft Parade, o quarto álbum, saído em 1969, é - por motivos que eles lá saberão - o mais fraco dos Doors. E, no entanto… Wild Child, Shaman's Blues, The Soft Parade - três obras-primas imaginativas e vibrantes, as joias da coroa de qualquer outra banda no mundo. Apologia do bom selvagem, crítica ao suposto genocídio indígena americano ou capricho xamanístico de Jim Morrison - não sei se Wild Child é tudo isto, ou nenhuma destas coisas. Não me interessa. Ouço um cântico de rock maciço, de indomáveis guitarrada e contagiante poesia - um eletrizante hino à liberdade.


7. Break On Through

O ritmo jazzístico, felino e perscrutante. O baixo malandro, tenso e masculino. A guitarra assertiva, exclamativa, confiante. Dez segundos se evolam - enter Jim Morrison: "You know the day destroys the night, Night divides the day…". E assim se apresentam os Doors ao mundo. Cocktail explosivo de proto-punk melódico, lirismo distópico e paixões violentas, Break On Through é uma selvajaria requintada, o postal de visita desse opulento festim de arte, misticismo e loucura, esse caos sublimado chamado The Doors - o primeiro e superlativo álbum, homónimo do grupo que em 1967 arrasou o mundo. 


6. Shaman's Blues

Nunca haverá outra canção como esta. Nunca haverá outra que consiga fazer as coisas que esta faz. Dar-lhe-ão uma hipótese, tentarão uma pequena tentativa? Por favor parem e lembrar-se-ão: estamos nisto juntos de qualquer maneira, all right. E se tiverem uma noite livre, podem-ma emprestar: dar-lhes-ei tudo de volta, como deve ser. É convosco. Eu conheço os vossos truques e a vossa mente. E a vossa mente, até ao infinito. Vamos embora, irmão - vamos ouvir o Shaman's Blues, essa ode obsessiva e despeitada, fúria fria despedaçada, aditivo feitiço de guitarra magoada (a melhor de todos os tempos?). Não é isto espantoso?


5. People Are Strange

Alma do Strange Days e esplendor magnificente da dimensão melodiosa e oblíqua dos Doors, People Are Strange é a cantilena - sublime - dos deserdados do amor, folia barroca de tristezas e enganos e eterno refúgio dos descontentes.


4. The Crystal Ship

Muito se tem falado de poesia, transcendência e espiritualidade por aqui. Mas com Crystal Ship a conversa não pode ser outra. A sua aparição, logo no álbum de estreia - provavelmente o melhor primeiro álbum de toda a história - significa um elevar de fasquia, um desafio lançado pelos Doors a toda a indústria musical: já não entretenimento, rock ou digressão sensorial; mas arte pura e imortal. As modulações surpreendentes, o fascínio da construção melódia e a letra mais sublime que Jim Morrison alguma vez escreveu fazem desta canção um clássio incontornável, o non plus ultra da inspiração urbana nos seus remígios mais insólitos e nas suas possibilidades mais ousadas de obtenção da felicidade. 


3. Riders On the Storm

Pesadelo frio e litania de morte, Riders On The Storm é um último frame, ominoso e assombroso, a marcar o testamento musical dos Doors - o seu Requiem dessacralizado - e a saída de cena de Jim Morrison. Canção derradeira do derradeiro álbum dos Doors a quatro, LA Woman, de 1971.


2. The Soft Parade

Suíte musical multivariada (e de qualidade muito variável...), esta soberba extravagância, polifonia estrutural de sonoridades, ambiências e cambiantes por vezes chocantemente distintos, e que dá o título ao álbum - The Soft Parade, propriamente dito, o Soft Parade que importa - descontando o arrebatador intróito a solo de Jim Morrison - apenas se inicia ao minuto 3:05. A dimensão performativa é aqui especialmente importante: apesar do núcleo musical sublime, a jornada surrealista e intimamente teológica através da qual Jim Morrison nesta obra desesperadamente se confessa extravasa uma dimensão acrescida de humanidade despedaçada com a aura e o carisma que a sua persona de entertainer superior e ator consumado emprestam ao espetáculo. A somar a isto, aquela sincronia alquímica de irmandade mística que magicamente acontecia sempre que os Doors pisavam um palco. Mas palavras para quê? A construção esplêndida, magnífica e policromática que nesta odisseia se tece - esse luxo desmedido dos sentidos e estímulo garrido da imaginação - não se analisa nem descreve. Música assim experiencia-se, absorve-se - vive-se.


1. When the Music's Over

Que Strange Days é um dos melhores - e mais desvalorizados - álbums de sempre, já ninguém aqui tem permissão para duvidar. Mas poder-se-á considerar When the Music's Over - a sua faixa final - a realização suprema desse agrupamento de criativos primus inter pares? Como acontece com todas as músicas desta lista, aparte as suas qualidades objetivas, a resposta é também uma questão de temperamento. Uma das peculiaridades dos Doors - notada já por vários comentadores - consiste na ausência da tradicional guitarra baixo: na esmagadora maioria da sua produção e discografia (descontado o último álbum, LA Woman) foi Ray Manzarek quem, com a mão esquerda, fez as vezes desse instrumento nas teclas, desenhando com a direita os inconfundíveis arabescos melódicos apanágio do grupo. Essa subordinação relativa do baixo à metade pobre da atenção desse virtuosístico artista resultou assim numa repetição mais ou menos incessante das suas linhas em fundo musical, originando a feliz e involuntária consequência de arrastar o ouvinte, não raras vezes, para uma espécie de transe inconsciente. Esse fenómeno é particularmente válido em canções longas, e mais ainda neste delírio de loucura violenta - dança do fogo fascinante -, cujo feitiço enigmaticamente se impõe. Talvez isso se deva ao extemporâneo processo que acabei de descrever; ou talvez porque, como aqui se prova, a música seja com efeito o nosso único e mais especial amigo, quando elevada a uma das suas mais altas expressões.


2 comentários:

  1. Duarte Garrido Mestre do Cinema e do Mundo6 de fevereiro de 2012 às 17:46

    yes, the river knows - melhor música de doors

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  2. É uma transcendente canção, ó Mestre do Mundo - há que reconhê-lo!

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